
Entonces, como ia contando o fandango corria solto. A las tantas e num repente a luz varou a noite e o raio passou por riba do galpão e foi de encontro à égua do compadre Filistêncio. Naquele momento, parecia que o céu tinha se partido no meio. Foi negócio feio!
Eu lá num canto com uma morena faceira estava de namoro, bem na hora do estouro. Num upa, dei de mão num facão e já gritei: Me pulem os fariseus!!!
A la pucha! Foi de susto, eu confesso. Mas o chão tremeu e muita gente gritou:
-Nos salve Nossa Senhora!!!
É uma estória bem comprida e mostra que vida se acaba num relance. E se não fosse o bastante, ainda a Dona Marica, viúva pela segunda vez, no fim da prenhez gritou:
-Chegou à hora!!!
Foi um reboliço e uma gritaria, o povaréu em coro chamando pela Virgem Maria! Senti o cherume de morte, senti inté um frio no cangote e rezei que a sorte, não tivesse me abandonado. Eu não era acostumado e nem era homem de réza, mas chamei por Deus e apelei pela Virgem Maria.
Ainda bem que não era uma noite fria, se larguemo na chuvarada, eu e toda peonada de lampião e facão. Já na saída me lembro como se fosse hoje, a Dona Chica entre a vida e a morte, pedindo socorro.
Adoentada e de coração fraco, também sofria dos quarto, que lhe impedia de correr. E ao ver todo o entrevero, de susto sentiu-se mal e afinal, o pior aconteceu. Desde mocita, sofria demais. Foi criada sem mãe e sem pai, por um certo fazendeiro, homem de posses e de muito dinheiro. Vivente destemido que até bandido, corria de medo. E desde cedo à coitadinha sofria, na judiaria e no sofrimento. E nem deu tempo, de buscar o doutor. A mulher se foi, entre lágrimas e lamentos e foi nesse momento que pensei: De que vale uma vida sofrida deste jeito! Doeu no meu peito, ver a coitadinha no chão esparramada e rezei de novo, para que não virasse alma penada e que Deus lhe recebesse com alegria.
E no alvoroço e na correria, pois naquele dia quem sobreviveu entendeu, que pior que estouro de boiada, é ver a peonada em desespero e reboliço. Pois o risco que se correu, fez até ateu se colocar a rezar. E não é querer exagerar, não foi um susto qualquer, pois teve até mulher, que se curou da dor de cabeça.
Por pior que pareça, sempre tem o lado bom das coisas. Foi isso que me disse o compadre Felistêncio, que andava abichornado e que desde aquele momento é um homem feliz. Curou-se da gagueira e queira ou não queira, o triste assucedido regenerou até muito mequetrefe e bandido. No mais e para arrematar o causo, les conto o que ele sempre me diz:
- Perdi minha égua de estimação, mas a patroa essa está boa e me encanta. Bem cedo levanta me chamando de meu bem, fala que ama e me dá mais um beijinho. Carinho eu tenho até de sobra! Parece doce de abóbora, de tão bom que é. E mulher, deste jeito deixa qualquer homem tonto e faceiro. Melhor que dinheiro, é uma china que nos ame! E se não fosse o infame do raio, eu ainda era gago e estava no assoalho, dormindo ainda no chão!!!
Mais um causo gaúcho.
Beijos, aos que visitam este espaço!
A la pucha: Exprime admiração, espanto.
A las tantas: A tantas horas, lá pelas tantas.
Abichornado: Aborrecido, triste, desanimado, vexado, envergonhado, acovardado, aniquilado, magoado, acabrunhado, macambúzio, abatido.
Assuceder: Acontecer, ocorrer.
Cangote: Deturpação de cogote. Nuca, pescoço.
Charla: Conversa.
Cherume: Cheiro. Resquício, vestígio de alguma coisa.
China: Mulher gaúcha; descendente ou mulher de índio, ou pessoa de sexo feminino que apresenta alguns dos traços característicos étnicos das mulheres indígenas; cabloca, mulher morena; mulher de vida fácil; esposa.
Entonces: adv. Então, pois. (Arc. port. Em uso no RS)
Entrevero: Mistura, desordem, confusão de pessoas, animais ou objetos.
Fandango: Baile.
Inté: Até. Significa, também, “até logo”, “até outra vista”
Le: pron. Lhe. (Este vocábulo, empregado na linguagem popular do Rio Grande do Sul, por influência castelhana, é, também, forma de português arcaico).
Mequetrefe: Diz-se do indivíduo vagabundo, tratante, capadócio, fanfarrão.
No mais: Não mais, sem mais, sem preâmbulos, sem mais nem menos, simplesmente, tão somente, unicamente, apenas.
Num repente: De repente, repentinamente.
Num upa: Num abrir e fechar de olhos. De golpe, de sopetão, muito rapidamente, sem delongas.
Peonada: Grande número de peões.
Patroa: Esposa.
Povaréu: Multidão de pessoas.
Varar: Atravessar, bandear, cruzar.
Vivente: Pessoa, criatura, indivíduo.
Obra do artista plástico gaúcho: Voldinei Burkert Lucas